O lar dos textos budistas tibetanos em tradução
ISSN 2753-4812
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O Discurso da Serpente Negra

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Introdução

por Patrick Dowd

Rongzom Chökyi Zangpo — também conhecido pelo seu nome Sânscrito Dharmabhadra, tinha, após o nome, o título de "Grande Erudito" Mahāpaṇḍita — Rongzom Mahāpaṇḍita ou simplesmente Rongzompa, foi um dos mais importantes estudiosos e primeiros sistematizadores da tradição Nyingma.

Um gênio polímata, Rongzom Mahāpaṇḍita era um lotsāwa, renomado por suas traduções excepcionais do Sânscrito para o tibetano, e autor de muitos tratados originais. Os textos que compôs demonstram uma rara profundidade e amplitude de erudição e abrangem tópicos que vão da gramática sânscrita à agricultura e pecuária[1].

No entanto, ele é principalmente lembrado por sua defesa leonina das escrituras, práticas e filosofia Nyingma, todas elas sob ataque dos adeptos das Novas Escolas. Seus escritos fornecem uma base exegética para a filosofia Nyingma e serviram como fonte essencial de inspiração para seus sucessores, Longchen Rabjam (1308-1364) e Ju Mipham (1846-1912). A tradição Nyingma considera esses três mestres como Oniscientes (kun mkhyen), mas, como o primeiro defensor da escola, Rongzompa ocupa uma posição única em sua história[2]. Uma breve introdução à sua vida e época lançará luz sobre seu status dentro da linhagem e ajudar a contextualizar o texto brilhante, um tanto polêmico e altamente peculiar traduzido abaixo.

Alak Zenkar Rinpoché indica o ano do Dragão de Ferro, 1040, como o ano de nascimento de Rongzom, embora outras fontes, incluindo Düdjom Jikdrel Yéshé Dorjé, digam que ele nasceu em 1012[3]. Seja qual for o caso, há um amplo consenso acadêmico de que ele prosperou na segunda metade do século XI e levou uma vida longa e produtiva, talvez até 1136.

Nascido no baixo Tsang, em uma família de devotos praticantes Nyingma leigos, casou-se e teve três filhos, que receberiam e transmitiriam sua linhagem religiosa[4]. Numa época em que mestres como Atiśa Dīpaṃkara Śrījñāna (982-1055?) e Dromtönpa Gyalwé Jungné (1004-1064) enfatizavam a importância do celibato e da rigorosa disciplina monástica, Rongzompa manteve a tradição secular do Tibete de práticas tântricas leigas e transmissão religiosa hereditária. Tal dinâmica é emblemática do cadinho cultural deste período da história tibetana e sustenta o ambiente dinâmico, e às vezes bastante hostil, em que Rongzompa viveu e escreveu.

Do final do século X a meados do século XI, novas forças políticas emergiram no Tibete após a tumultuada Era da Fragmentação (sil bu'i dus), iniciada com o colapso do Império Tibetano em 842. Diferente do Período Imperial (btsan po'i dus rabs), no qual o poder centralizado era exercido sobre todo o planalto tibetano, o período no qual Rongzompa viveu, testemunhou a ascensão de reinos amplamente descentralizados e muito menores – embora muitos se esforçassem para recriar o mundo visionário dos grandes Reis do Dharma do Tibete, com o patrocínio religioso e projetos de tradução em larga escala no cerne de sua busca por legitimidade política.

O reino tibetano ocidental de Purang-Guge (pu hrangs gu ge), governado por Lha Lama Yeshe Ö e seu sobrinho Jangchub Ö, foi mais famoso dessa nova constelação de centros culturais. Juntos, eles patrocinaram os estudos do grande tradutor Rinchen Zangpo (958-1055) na Índia e convidaram Atisha, de sua residência no mosteiro de Vikramaśīla, para o Tibete. Esses exemplos de Purang-Guge representam os valores culturais mais amplos da época, com a importação de linhagens budistas "puras" da Índia e do Nepal, enquanto a autenticidade das linhagens budistas imperiais existentes no Tibete era questionada.

Giuseppe Tucci afirmou que os “pensadores e ascetas” desse período “espalharam sobre todo o Tibete uma luz espiritual que ainda não se extinguiu”[5]. Sem dúvida, esta foi uma era de grande renascimento cultural após mais de um século de caos, rivalidade entre clãs e guerra civil. O vasto tesouro de textos Budistas que chegou ao Tibete nessa época ainda é estimado quase mil anos depois.

No entanto, este também foi um momento de polarização e conflito emergentes entre as tradições Budistas recém-importadas, as “Novas” (gsar ma), e as posteriormente rotuladas como “Antigas” ou “Antigos” (rnying ma). Essa divisão foi ainda mais reificada à medida que os defensores da “transmissão posterior” (phyi dar) ou das “traduções posteriores” (phyi 'gyur) questionavam a própria veracidade da “transmissão anterior” (snga dar) ou das “traduções anteriores” (snga 'gyur)[6]. Nesse clima extremamente antagônico, “Rongzom considerou métodos para defender e provar a validade dos tantras Nyingma que estavam sob ataque”[7].

As hagiografias de Rongzom destacam seu encontro com Atiśa, que supostamente o identificou como uma encarnação do mahāsiddha indiano Kṛṣṇapāda. Essas fontes também o mostram encontrando outros mestres Sarma, como Gö Khukpa Lhetse (século XI d.C.) e Marpa Chökyi Lodrö (1012-1097), que expressaram grande admiração, apesar da intenção original de denegrir a ele e à tradição Nyingma. Heidi Köppl ressalta: “É difícil estimar até que ponto esses encontros relatados com oponentes famosos têm alguma realidade histórica, mas os relatos são interessantes, pois ressaltam uma atmosfera de tensão e uma busca por autenticidade”[8]. Este foi o primeiro momento na história tibetana em que os adeptos da transmissão budista antiga encontraram a legitimidade de seus textos e práticas sob ataque, estabelecendo um precedente para ações que continuaram, com variados graus de intensidade e perseguição, por quase um milênio.

Os conflitos desse período refletem-se no tom do Discurso da Serpente Negra, que apresenta os sistemas de doutrinas filosóficas Budistas (grub mtha') usando o exemplo do reflexo de uma serpente negra na água[9]. Após propor como cada uma das escolas inferiores se relacionaria com tal reflexo, Rongzompa conclui que somente os seguidores da Grande Perfeição chegam a uma compreensão lúcida e correta da realidade, ou seja, que o reflexo da serpente não justifica absolutamente nenhuma resposta. Isso o leva à sua ousada afirmação da superioridade da Grande Perfeição e da tradição Nyingma como um todo.

Enquanto as linhagens Sarma geralmente consideram Madhyamaka como a visão mais elevada e a apoteose da filosofia budista, Rongzom a coloca apenas em segundo lugar em seu esquema ascendente de cinco. De acordo com sua perspectiva, os Mādhyamikas carecem até mesmo de um mínimo da consciência não dual que realiza a inseparabilidade das verdades relativas e últimas.

Para Rongzom o Sūtrayāna é inferior a qualquer visão tântrica, mesmo a dos tantras externos, nos quais a deidade permanece externa ao praticante e o controla. Com os tantras internos e as práticas Vajrayāna dos estágios de yoga de Desenvolvimento (bskyed rim) e Perfeição (rdzogs rim), o praticante desenvolve uma compreensão intermediária da consciência não dual. No entanto, é somente com a Grande Perfeição, o ápice de todos os yānasBudistas, que o praticante chega à “visão da inseparabilidade do último e do relativo, o que se pretende com a designação da própria equalidade”. Este texto é apenas um dos muitos no corpus de Rongzom nos quais ele defende veementemente a supremacia do Mantra e do Budismo esotérico sobre a doutrina exotérica de Madhyamaka.

Dentro dessa estrutura dos sistemas doutrinários, Rongzompa utiliza a terminologia e o raciocínio da cognição válida (Sânscrito pramāṇa, tibetano tshad ma) para explicar os ensinamentos não conceituais da Grande Perfeição. Frequentemente chamado de "lógica Budista", o pramāṇa era central nos currículos dos centros monásticos de aprendizado e debate filosófico, como Sangphu (gsang phu), que surgiram no Tibete nessa época. A Serpente Negra demonstra como Rongzompa empregou esse método dialético, mas, ao mesmo tempo, revela a tensão criativa inerente ao uso da lógica para transcender a lógica (e todos os outros conceitos) e chegar à consciência não dual da Grande Perfeição.

O tratado também apresenta algumas das características do estilo literário próprio de Rongzom. Por exemplo, ele mergulha imediatamente no conteúdo de seu discurso, omitindo a homenagem inicial aos buddhas e bodhisattvas, padrão em quase todos os tratados Budistas indianos e tibetanos. Como tradutor de textos sânscritos, ele estava claramente ciente da convenção e até a menciona em seu tratado sobre linguística, O Comentário sobre a Arma da Fala (smra sgo mtshon cha'i 'grel)[10]. Ainda assim, ele exclui a homenagem neste e em quase todos os seus outros tratados existentes[11]. Ele também simplesmente termina o texto com sua refutação final e não inclui o esperado colofão para explicar o contexto de sua composição. Essas omissões conferem ao tratado uma brusquidão que o distingue das obras geralmente ornamentadas do cânone budista indo-tibetano.

Outra marca de seu estilo iconoclasta, evidente em A Serpente Negra, é a ausência de qualquer apelo à autoridade, seja do Buddha ou de mestres Budistas anteriores, em apoio aos seus argumentos. Nesse momento do século XI, enquanto os debates sobre a legitimidade e a autenticidade dos textos budistas se intensificavam, escritores contemporâneos como Atiśa infundiam seus tratados com abundantes referências a escrituras Budistas específicas para validar seus próprios argumentos[12].

Rongzom, por outro lado, parece singularmente despreocupado em estabelecer a legitimidade de seus escritos com base em tais apelos e "nunca afirma que suas discussões são repetições de declarações anteriores do Buddha"[13]. No presente texto, ele faz apenas uma referência explícita às escrituras Budistas estabelecidas, e mesmo isso parece menos para reforçar seu argumento e mais para fornecer uma imagem cômica e ridícula: a da tez do filho de uma mulher estéril. O efeito geral é criar um tom de autoconfiança intrépida.

Uma demonstração particular do gênio literário de Rongzom ocorre no final do tratado. À pergunta retórica "Bem, então, o que a sua tradição afirma?", Rongzom responde: "Nós apenas refutamos suas visões errôneas, sem de forma alguma estabelecer qualquer ponto nosso". Essa reductio ad absurdum (reminiscente da famosa afirmação de Nāgārjuna de "não ter tese") utiliza precisamente a argumentação do Prāsaṅgika Madhyamaka, considerado a visão mais elevada por muitas das linhagens Sarma, para estabelecer a supremacia filosófica da Grande Perfeição. Aqui, Rongzom demonstra uma compreensão hábil do método dialético emergente na escolástica tibetana, ao mesmo tempo em que enfraquece essa mesma posição filosófica e afirma a superioridade da visão Nyingma.


  1. Almogi 2002, 67  ↩

  2. Ju Mipham, em particular, foi profundamente influenciado por Rongzompa e buscou reunir todas as suas obras existentes. Mipham Rinpoche chegou a compor uma sādhana de guru yoga tendo Rongzompa como divindade central, intitulada "Chuva de Bênçãos: Um Guru Yoga do Grande Paṇḍita, o Glorioso Rongzom" (dpal rong zom paN+Di ta chen po'i bla ma'i rnal 'byor byin rlabs char 'bebs).  ↩

  3. Citado em Sur 2021.  ↩

  4. Sur 2021.  ↩

  5. Tucci, Giuseppe. Secrets of Tibet: Being the Chronicle of the Tucci Scientific Expedition to Western Tibet. Blackie & Son Limited: London and Glasgow, 1935: 165.  ↩

  6. Germano, David. “A Brief History of Nyingma Literature.” Tibetan and Himalayan Digital Archive. 2002.  ↩

  7. Köppl, Heidi. Establishing Appearances as Divine. Snow Lion Publications, 2008: 16.  ↩

  8. ibid. 18.  ↩

  9. Quando o termo sbrul nag po aparece em obras canônicas tibetanas, geralmente é uma tradução do termo composto Sânscrito kṛṣṇasarpa (ou uma variante dele) e se refere especificamente à cobra (preta). (Informações fornecidas por Stefan Mang.)  ↩

  10. ibid. 19.  ↩

  11. ibid. 19.  ↩

  12. Veja a obra mais famosa e importante de Atiśa, A Lâmpada para o Caminho da Iluminação.  ↩

  13. ibid. 19.  ↩

O Discurso da Serpente Negra[1]

por Rongzom Chökyi Zangpo

As diferenças entre visão e conduta pertencentes aos veículos superiores e inferiores devem ser entendidas, em resumo, da seguinte forma: As várias visões são postuladas com base no aparecimento de corporificações, locais e objetos dos sentidos, que são abrangidos pelo corpo, pela fala e pela mente. Entretanto quer tenhamos ciência de que as coisas aparecem ou não, para qualquer pessoa que defenda as várias tradições escriturais — desde iniciantes até bodhisattvas de décimo nível — isso não é assunto para debate. Por quê? Porque a aparência[2] percebida diretamente é indiscutível[3]. Por essa razão, debates sobre tal aparência surgem sobre as maneiras como ela é caracterizada.

Em resumo, existem cinco tipos de formas de caracterizar a aparência. Nesse sentido, citaremos primeiro um exemplo. O exemplo é o reflexo de uma serpente negra na água:

[1] Algumas pessoas, acreditando tratar-se de uma serpente de verdade, ficam com medo e tentam se livrar dela.

[2] Alguns sabem que se trata do reflexo de uma serpente. Embora reconheçam que não se trata de uma serpente de verdade, percebem que até mesmo um reflexo tem a capacidade de produzir efeitos nocivos, por isso se esforçam para encontrar maneiras de neutralizá-lo por meio de meios hábeis.

[3] Alguns sabem que se trata de um reflexo e, por não estar fundamentado nos elementos[4] principais, sabem que não tem capacidade de produzir efeitos[5]. Ainda assim, devido ao poder de terem tido medo de serpentes e similares, são incapazes de tocar ou pisotear o reflexo.

[4] Some understand that it has no capacity to produce effects because it is [only] a reflection, and to quickly dispel this paranoid state of mind, they touch it and trample it by means of ascetic disciplines.

[5] Alguns sabem tratar-se de um reflexo, por isso não pensam em rejeitá-lo ou aceitá-lo e não se esforçam de forma alguma. De forma semelhante, os princípios filosóficos dos veículos estão de acordo com o significado desses exemplos.

[1] O primeiro deles é o caminho dos Śrāvakas. Neste caso, eles aceitam que esses fenômenos de sofrimento e fontes de sofrimento existem convencionalmente e existem em última instância, e também que são substancialmente existentes. Portanto, pelo poder dessas crenças, eles veem as coisas como sendo reais e se envolvem em aceitá-las e rejeitá-las. Isso é semelhante a ver o reflexo da serpente como algo real e então tentar se livrar dela. Entre o que é conhecido como "os quatro modos de existência", neste sistema temos três: 1) existência última, 2) existência convencional e 3) a existência substancial[6] de ambas[7].

[2] O segundo exemplo corresponde ao sistema do Caminho do Meio (Madhyamaka) do Grande Veículo (Mahāyāna). Neste caso, essas aparências são como ilusões mágicas porque não são substancialmente estabelecidas como algo real. No entanto, assim como um veneno ilusório tem a capacidade de produzir efeitos, portanto os fatores poluentes[8] da existência, semelhantes a ilusões, produzem efeitos nocivos se não forem tratados por meios hábeis, mas produzem efeitos benéficos se tratados por tais meios.

Portanto, uma vez que tais fenômenos são substancialmente existentes no nível convencional, afirma-se que eles devem ser aceitos ou rejeitados. Isso é semelhante a afirmar que, embora seja apenas um reflexo de uma serpente, tem existência substancial e, deste modo, produzem efeitos. Neste sistema, entre os quatro tipos de existência, a chamada existência última é refutada, mas a chamada existência convencional e a existência nominal são mantidas.

[3] O terceiro exemplo corresponde aos tantras externos do ascetismo[9], Kriyā e Yoga. Aqui, as aparências fenomenais não têm qualquer existência substancial porque são como ilusões. Mesmo que essas coisas não tenham tal falha, os adeptos não conseguem agir devido ao poder do medo prévio. Mas eles são capazes de invocar um herói divino[10] externo para agir em seu nome. Isso é semelhante a saber que o reflexo de uma serpente é inofensivo, mas ainda assim não ser capaz de tocá-lo.

Entre os quatro modos de existência, neste sistema, a chamada existência última, bem como a existência substancial no nível convencional, são refutadas, mas a existência nominal no nível convencional é mantida. Além de aceitar apenas este sistema de duas verdades em comum [com o Madhyamaka], eles reconhecem que não há existência substancial no nível convencional. É aqui que a visão da equalidade que realiza a inseparabilidade do último e do convencional é alcançada pela primeira vez, embora em menor grau.

[4] O quarto exemplo corresponde à visão do Mahāyoga interior. Aqui, estando cada vez mais cientes de que todos os fatores poluentes da existência são como uma ilusão, os adeptos empreendem formas milagrosas de conduta tântrica a fim de tornar rapidamente possível a visão da equalidade, de uma maneira semelhante a pisotear [a cobra ilusória] por meio da prática ascética[11], de modo a dissipar rapidamente até mesmo o mero medo do reflexo da cobra.

Neste sistema, quando a crença na existência nominal da realidade convencional é em grande parte extinta, de modo que o estado desperto é amplamente liberto da apreensão de e da crença na a visão da verdade como sendo dual[12], o pensamento da inseparabilidade das duas verdades é atingido em um grau médio.

[5] O quinto exemplo corresponde à visão da Grande Perfeição (rdzogs chen). Neste caso, há a realização de que, se a cobra é ilusória, então toda rejeição, medo e pisoteamento real derivam de uma visão baseada na crença em entidades reais . Realizando, desta forma, que o que é ilusório não fornece base para fazer esforços, os adeptos não rejeitam nada nem tentam alcançar nada. Neste sistema, a compreensão da natureza ilusória dos fenômenos atinge sua extensão total.

Reconhecendo que as aparências não possuem características definidoras, os adeptos são liberados até mesmo das crenças mais sutis na realidade última e convencional e, portanto, são liberados de todas as visões metafísicas. Isso é convencionalmente denominado “o propósito da equalidade básica”, “a visão da inseparabilidade do absoluto e do convencional”.

Como a aparência diretamente percebida manifestou-se devido ao poder de tendências latentes, ela não desaparece rapidamente. Visto que a habituação à tal aparência é produzida por noções errôneas adventícias, ela pode desaparecer rapidamente. Essa habituação, além disso, surge da crença em características. Esta, por sua vez, surge da visão de entidades reais. Mas se essas três concepções cessarem[13], então, mesmo que a aparência baseada na concepção essencialista não tenha cessado, ainda assim não surgirá a visão metafísica da verdade como dual.

Aqui, alguém pode se perguntar por que as escrituras Madhyamaka não distinguem a verdade em duas categorias no nível supremo e porque as escrituras Guhyamantra não rejeitam as aparências. Isso requer explicação.

Uma pessoa em cuja mente as características definidoras das duas verdades são intelectualmente postuladas como verdadeiramente estabelecidas e, portanto, determinadas como sendo objetos de conhecimento, jamais será capaz de abandonar a mente dualista. Pois, quando essa pessoa determina que “as duas verdades são inseparáveis”, com essa crença profundamente arraigada, ela também não abandona a ideia de que o convencional existe como mera ilusão. Sendo assim, mesmo quando estabelece a natureza não dual da realidade, ela abriga pensamentos associados ao dualismo.

Ao determinar que “convencionalmente, as coisas são semelhantes a ilusões”, elas são descritas como “ilusórias” porque as elaborações conceituais, ou seja, as imputações de existência última feitas pelos seguidores dos Śrāvaka e Yogācāra foram reprimidas. No entanto, o Mādhyamika não diz “semelhantes a ilusões” por conta de as coisas serem vazias de substâncias causalmente eficazes no nível convencional. Aqui, mesmo no momento de fazer essa determinação, tendo apreendido as características definidoras do que é substancialmente estabelecido no nível convencional como sendo real, afirma-se então que “estas não são de fato estabelecidas como entidades reais”.

Neste caso, portanto, a mente não abandonou esses dois modos de ser, [ou seja, o último e o convencional][14]. Sendo assim, segue-se que, quando a aparência — ou seja, o sujeito (chos can)[15] — é postulado como uma instância definida (mtshan gzhi)[16], enquanto ocorrer que nossa mente remova os predicados (chos) desse sujeito ou as elaborações conceituais relativas a essa instância definida, e assim considerar a aparência como meramente ilusória, a mente que se apega e acredita nas características definidoras da aparência não cessou. Tal pessoa não é considerada alguém com a visão de grande equalidade.

Nesse sentido, a determinação dos objetos de conhecimento pela fixação da mente na subdivisão[17] das duas verdades foi declarada um remédio para pessoas que se apegam excessivamente a entidades reais. No entanto, a essência dos fenômenos não possui características definidoras dualísticas. De fato, aquele em quem a crença em características definidoras cessou está livre desse apego e, portanto, não mais anseia ou deseja nada que apareça. Nesse caso, o termo "visão de grande equalidade" é empregado.

Uma pergunta adicional: "A mera aparência não é a realidade convencional?" [Resposta:]

Isso é o que foi apontado acima em relação a qualquer pessoa que acredite que a aparência seja convencional e acredite, no fundo[18], que a liberdade de elaborações conceituais a respeito disso é o absoluto. Ainda assim, para uma mente que não acredita na realidade das duas verdades, perguntar se elas são uma ou duas é como perguntar se o filho de uma mulher estéril é azul ou branco, como citado nas escrituras[19].

Uma pergunta adicional: "O que, então, a sua tradição estabelece?" Nós apenas repudiamos suas visões metafísicas inferiores, sem estabelecer qualquer ponto superior nosso. No uso costumeiro, isso é chamado de "visão da grande equalidade", embora não haja qualquer crença em qualquer visão metafísica.


| Traduzido por David Higgins, 2023. Traduzido do Tibetano para o Português utilizando a versão de David Higgins como base por Sergio de Senna Correa.


Bibliografia

Edições Tibetanas

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Rong zom chos kyi bzang po. "Sbrul nag po’i stong thun" In Rong zom bka’ ’bum: A Collection of Writings by the Rnying-ma-pa Master Rong zom Chos kyi bzang po. Thimpu: Kunsang Topgay, 1976, 445–452.4

Fontes Secundárias

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Versão: 1.0-20251009


  1. Esta curta parábola, estilizada como um resumo (stong thun), é bem conhecida nos círculos Nyingma e Kagyü por sua lúcida exposição das duas verdades, conforme compreendidas a partir de vários pontos de vista filosóficos budistas que, tomados em sequência ascendente, culminam na mais alta doutrina tântrica da inseparabilidade das duas verdades. Minha compreensão deste texto deve muito à visão geral e à análise filosófica de Mikyö Dorje em sua obra-prima final, Sku gsum ngo sprod rnam bshad. Para uma tradução e edição crítica da seção relevante, veja Higgins e Drazczyk 2019, vol. 2, 255-67 e 268-76; para uma análise filosófica contemporânea dos discursos de Mikyö Dorje e Rongzom sobre a metáfora da serpente negra no contexto da doutrina da inseparabilidade das duas verdades, veja ibid., vol. 1, 257-76. Conheci a parábola da serpente negra de Rongzom em 1986, quando estudei a versão resumida apresentada no terceiro capítulo de "Theg chen tshul 'jug", de Rongzom, com o Prof. Herbert Guenther em um curso de pós-graduação em Leituras Tibetanas. Nesse ínterim, beneficiei-me da tradução e discussão desta sinopse na tradução de Dominic Sur de "Theg chen tshul 'jug" (Sur, 2017) e das análises do "Sbrul nag po'i stong thun" em Koppl, 2008 e 2010, e Almogi, 2009.  ↩

  2. Tib. mtshan nyid : Sânscrito . lakṣaṇa  ↩

  3. Tib. sgro skur med. Literalmente, “não há imputação (sgro ' dogs) ou depreciação (skur 'debs)”, o que, neste contexto, significa que a evidência ingênua do que é diretamente percebido por todos (exceto bodhisattvas e buddhas de décimo nível) é indiscutivelmente atestada por todos e, portanto, não é motivo de disputa, seja a favor ou contra.  ↩

  4. Literalmente, “porque lhe faltam os elementos principais como base”. Os quatro elementos principais (mahābhūta) são terra, água, vento e fogo.  ↩

  5. Tib. bya ba byed pa’i nus pa: sânsc. arthakriyā. Os Budistas Sarvāstivādins (“aqueles que proclamam que tudo existe”) eram realistas metafísicos na medida em que acreditavam que todos os objetos, propriedades e relações que o mundo contém existem independentemente de como e se os percebemos, experimentamos ou pensamos sobre eles. Subjacente a essa visão está a suposição de que entidades objetivas têm certos poderes causais, ou seja, têm a capacidade de causar efeitos (eficácia causal) ou desempenhar funções (arthakriyā) que servem a propósitos específicos, como no exemplo clássico de um jarro ser capaz (e, portanto, servir ao propósito específico) de conter água. Contra os realistas, os Budistas idealistas argumentavam que mesmo fenômenos não físicos podem produzir efeitos, como no exemplo de um sonho erótico. Sobre os diferentes significados de arthakriyā e algumas de suas implicações filosóficas, veja Mikogami 1979.  ↩

  6. Tib. rdzas su yod pa : Sânscrito . Dravyasat  ↩

  7. O único modo de existência em que eles não acreditam é 4) a existência nominal (btags su yod pa: sânsc. prajñāptisat) das realidades últimas e convencionais.  ↩

  8. Tib. kun nas nyon mongs pa’i chos: sânscrito: saṃkleśadharma. Seguindo as explicações de Schmithausen sobre este termo, eu o traduzo como “fatores poluentes”. Este termo é frequentemente empregado juntamente com seu antônimo vyavadāna [dharma] (“[fatores] purificadores”). Veja Schmithausen 2014, 135, 145. Esses dois termos são considerados correlatos de saṃsāra e nirvana, respectivamente; tomados em conjunto, refletem a antiga preocupação cultural pan-indiana com a pureza e a impureza, no que se refere especificamente às ideias soteriológicas de obscurecimento e purificação. Embora o alcance semântico de saṃkleśa se sobreponha ao de kleśa, o primeiro (como Anne MacDonald me apontou) é, na verdade, mais amplo, abrangendo todos os aspectos da existência "samsárica" (ver, por exemplo, Schmithausen 2014, 135, n. 552). “Por exemplo, a compaixão (karunā) tem um sentido positivo e não é um kleśa (todos os kleśas são negativos), mas é um saṃkleśa porque envolve apego.” (MacDonald, correspondência por e-mail, 2020). Nesse sentido, o prefixo saṃ- parece significar a natureza global e penetrante desses fatores contaminadores da existência. Vale a pena notar que a metáfora central transmitida por saṃkleśa (impureza, poluição) é o significado primário de kleśa em si, como refletido no indiano médio kileśa e no páli kilesa, que ambos significam "sujar, manchar, profanar". A conotação de “aflição” (popular em traduções modernas da família de termos nyon mongs tibetanos) é um significado secundário que deriva de uma compreensão clássica mais geral (não Budista) baseada na raiz verbal kliś- (afligir, atormentar, causar dor), veja Schmithausen 1987 vol. 2, 246-7, n. 21. Finalmente, pode-se notar que tanto o significado primário quanto o derivado de kleśa (ou seja, profanação e aflição) foram explorados por intérpretes Budistas indianos quando definem este termo, e ambos os sentidos são vagamente refletidos nos elementos do composto tibetano nyon mongs (perturbação/obscurecimento).  ↩

  9. Os três veículos tântricos inferiores são conhecidos como "tantras externos do ascetismo" (phyi thub pa rgyud). Estes são superados pelos três veículos tântricos superiores, conhecidos como "tantras internos dos meios hábeis" (nang thabs kyi rgyud), que compreendem Mahāyoga, Anuyoga e Atiyoga (rdzogs chen).  ↩

  10. Tib. dpa' bo: Sânscrito (mvy) vīra, śūra. Este termo possui uma ampla gama de significados, mas refere-se amplamente a figuras humanas ou divinas associadas a poder, coragem e virilidade. Muitas vezes, como no presente contexto, refere-se a divindades masculinas iradas que aparecem com suas consortes (vidyā) na comitiva da maṇḍala tântrica e servem para proteger o adepto tântrico de vários obstáculos e influências prejudiciais.  ↩

  11. Tib. brtul zhugs : sânscrito. (Negi) vrata  ↩

  12. Tib. bden pa gnyis su lta ba’i ’dzin pa  ↩

  13. Tib. log pa. Eu leio isso aqui como um verbo intransitivo (tha mi dad pa). As três concepções, que progressivamente engendram o realismo metafísico, são: 1) a visão de entidades reais, 2) a crença em suas características (ou propriedades) e 3) habituação (ou apego) às aparências.  ↩

  14. Tib. tshul gnyis. Também é possível que este termo se refira aos dois "sistemas", a saber, Śrāvaka e Yogācāra, mencionados acima, mas o contexto sugere que Rongzom se refere aqui, mais uma vez, à suposta dicotomia entre as duas verdades, que ele considera uma armadilha para as tradições budistas não tântricas em geral, incluindo Madhyamaka.  ↩

  15. Tib. chos can: Sânscrito. dharmin, lit. “possuidor de propriedade”, ou seja, o sujeito da predicação, aquilo que é definido por qualidades particulares (chos: dharma).  ↩

  16. Tib. mtshan gzhi. Para uma discussão útil da teoria da característica definidora (mtshan nyid), definiendum (mtshon bya) e exemplificação (instanciação, instância definida) (mtshan gzhi), ver van der Kuijp 1983, 65-68 e a revisão de Tillemans sobre isso (Tillemans 1984, 61).  ↩

  17. Tib. rkya ba. Rkya é um termo tibetano antigo (às vezes skya [ba] na grafia posterior) que se refere a "uma unidade de terra" demarcada para fins tributários durante o Período Imperial. Nos registros de terras imperiais, rkya é frequentemente conjugado com zhing (campo, terra) para formar o composto rkya zhing (lote de terra). Rongzom aqui usa o termo metaforicamente para significar a divisão ou compartimentação das duas verdades. Usei o termo "subdivisão" para captar esse sentido. Para uma investigação histórica esclarecedora deste termo, veja Iwao 2009.  ↩

  18. Tib. zhe la  ↩

  19. Esta é uma tradução provisória da frase que aparece de modo independente gzhag par lung bstan pa yin te.  ↩

Rongzom Chökyi Zangpo

Rongzom Chökyi Zangpo

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