O Discurso da Serpente Negra
Introdução
por Patrick Dowd
Rongzom Chökyi Zangpo — também conhecido pelo seu nome Sânscrito Dharmabhadra, tinha, após o nome, o título de "Grande Erudito" Mahāpaṇḍita — Rongzom Mahāpaṇḍita ou simplesmente Rongzompa, foi um dos mais importantes estudiosos e primeiros sistematizadores da tradição Nyingma.
Um gênio polímata, Rongzom Mahāpaṇḍita era um lotsāwa, renomado por suas traduções excepcionais do Sânscrito para o tibetano, e autor de muitos tratados originais. Os textos que compôs demonstram uma rara profundidade e amplitude de erudição e abrangem tópicos que vão da gramática sânscrita à agricultura e pecuária[1].
No entanto, ele é principalmente lembrado por sua defesa leonina das escrituras, práticas e filosofia Nyingma, todas elas sob ataque dos adeptos das Novas Escolas. Seus escritos fornecem uma base exegética para a filosofia Nyingma e serviram como fonte essencial de inspiração para seus sucessores, Longchen Rabjam (1308-1364) e Ju Mipham (1846-1912). A tradição Nyingma considera esses três mestres como Oniscientes (kun mkhyen), mas, como o primeiro defensor da escola, Rongzompa ocupa uma posição única em sua história[2]. Uma breve introdução à sua vida e época lançará luz sobre seu status dentro da linhagem e ajudar a contextualizar o texto brilhante, um tanto polêmico e altamente peculiar traduzido abaixo.
O Discurso da Serpente Negra[1]
por Rongzom Chökyi Zangpo
As diferenças entre visão e conduta pertencentes aos veículos superiores e inferiores devem ser entendidas, em resumo, da seguinte forma: As várias visões são postuladas com base no aparecimento de corporificações, locais e objetos dos sentidos, que são abrangidos pelo corpo, pela fala e pela mente. Entretanto quer tenhamos ciência de que as coisas aparecem ou não, para qualquer pessoa que defenda as várias tradições escriturais — desde iniciantes até bodhisattvas de décimo nível — isso não é assunto para debate. Por quê? Porque a aparência[2] percebida diretamente é indiscutível[3]. Por essa razão, debates sobre tal aparência surgem sobre as maneiras como ela é caracterizada.
Em resumo, existem cinco tipos de formas de caracterizar a aparência. Nesse sentido, citaremos primeiro um exemplo. O exemplo é o reflexo de uma serpente negra na água:
[1] Algumas pessoas, acreditando tratar-se de uma serpente de verdade, ficam com medo e tentam se livrar dela.
[2] Alguns sabem que se trata do reflexo de uma serpente. Embora reconheçam que não se trata de uma serpente de verdade, percebem que até mesmo um reflexo tem a capacidade de produzir efeitos nocivos, por isso se esforçam para encontrar maneiras de neutralizá-lo por meio de meios hábeis.
[3] Alguns sabem que se trata de um reflexo e, por não estar fundamentado nos elementos[4] principais, sabem que não tem capacidade de produzir efeitos[5]. Ainda assim, devido ao poder de terem tido medo de serpentes e similares, são incapazes de tocar ou pisotear o reflexo.
[4] Some understand that it has no capacity to produce effects because it is [only] a reflection, and to quickly dispel this paranoid state of mind, they touch it and trample it by means of ascetic disciplines.
[5] Alguns sabem tratar-se de um reflexo, por isso não pensam em rejeitá-lo ou aceitá-lo e não se esforçam de forma alguma. De forma semelhante, os princípios filosóficos dos veículos estão de acordo com o significado desses exemplos.
[1] O primeiro deles é o caminho dos Śrāvakas. Neste caso, eles aceitam que esses fenômenos de sofrimento e fontes de sofrimento existem convencionalmente e existem em última instância, e também que são substancialmente existentes. Portanto, pelo poder dessas crenças, eles veem as coisas como sendo reais e se envolvem em aceitá-las e rejeitá-las. Isso é semelhante a ver o reflexo da serpente como algo real e então tentar se livrar dela. Entre o que é conhecido como "os quatro modos de existência", neste sistema temos três: 1) existência última, 2) existência convencional e 3) a existência substancial[6] de ambas[7].
[2] O segundo exemplo corresponde ao sistema do Caminho do Meio (Madhyamaka) do Grande Veículo (Mahāyāna). Neste caso, essas aparências são como ilusões mágicas porque não são substancialmente estabelecidas como algo real. No entanto, assim como um veneno ilusório tem a capacidade de produzir efeitos, portanto os fatores poluentes[8] da existência, semelhantes a ilusões, produzem efeitos nocivos se não forem tratados por meios hábeis, mas produzem efeitos benéficos se tratados por tais meios.
Portanto, uma vez que tais fenômenos são substancialmente existentes no nível convencional, afirma-se que eles devem ser aceitos ou rejeitados. Isso é semelhante a afirmar que, embora seja apenas um reflexo de uma serpente, tem existência substancial e, deste modo, produzem efeitos. Neste sistema, entre os quatro tipos de existência, a chamada existência última é refutada, mas a chamada existência convencional e a existência nominal são mantidas.
[3] O terceiro exemplo corresponde aos tantras externos do ascetismo[9], Kriyā e Yoga. Aqui, as aparências fenomenais não têm qualquer existência substancial porque são como ilusões. Mesmo que essas coisas não tenham tal falha, os adeptos não conseguem agir devido ao poder do medo prévio. Mas eles são capazes de invocar um herói divino[10] externo para agir em seu nome. Isso é semelhante a saber que o reflexo de uma serpente é inofensivo, mas ainda assim não ser capaz de tocá-lo.
Entre os quatro modos de existência, neste sistema, a chamada existência última, bem como a existência substancial no nível convencional, são refutadas, mas a existência nominal no nível convencional é mantida. Além de aceitar apenas este sistema de duas verdades em comum [com o Madhyamaka], eles reconhecem que não há existência substancial no nível convencional. É aqui que a visão da equalidade que realiza a inseparabilidade do último e do convencional é alcançada pela primeira vez, embora em menor grau.
[4] O quarto exemplo corresponde à visão do Mahāyoga interior. Aqui, estando cada vez mais cientes de que todos os fatores poluentes da existência são como uma ilusão, os adeptos empreendem formas milagrosas de conduta tântrica a fim de tornar rapidamente possível a visão da equalidade, de uma maneira semelhante a pisotear [a cobra ilusória] por meio da prática ascética[11], de modo a dissipar rapidamente até mesmo o mero medo do reflexo da cobra.
Neste sistema, quando a crença na existência nominal da realidade convencional é em grande parte extinta, de modo que o estado desperto é amplamente liberto da apreensão de e da crença na a visão da verdade como sendo dual[12], o pensamento da inseparabilidade das duas verdades é atingido em um grau médio.
[5] O quinto exemplo corresponde à visão da Grande Perfeição (rdzogs chen). Neste caso, há a realização de que, se a cobra é ilusória, então toda rejeição, medo e pisoteamento real derivam de uma visão baseada na crença em entidades reais . Realizando, desta forma, que o que é ilusório não fornece base para fazer esforços, os adeptos não rejeitam nada nem tentam alcançar nada. Neste sistema, a compreensão da natureza ilusória dos fenômenos atinge sua extensão total.
Reconhecendo que as aparências não possuem características definidoras, os adeptos são liberados até mesmo das crenças mais sutis na realidade última e convencional e, portanto, são liberados de todas as visões metafísicas. Isso é convencionalmente denominado “o propósito da equalidade básica”, “a visão da inseparabilidade do absoluto e do convencional”.
Como a aparência diretamente percebida manifestou-se devido ao poder de tendências latentes, ela não desaparece rapidamente. Visto que a habituação à tal aparência é produzida por noções errôneas adventícias, ela pode desaparecer rapidamente. Essa habituação, além disso, surge da crença em características. Esta, por sua vez, surge da visão de entidades reais. Mas se essas três concepções cessarem[13], então, mesmo que a aparência baseada na concepção essencialista não tenha cessado, ainda assim não surgirá a visão metafísica da verdade como dual.
Aqui, alguém pode se perguntar por que as escrituras Madhyamaka não distinguem a verdade em duas categorias no nível supremo e porque as escrituras Guhyamantra não rejeitam as aparências. Isso requer explicação.
Uma pessoa em cuja mente as características definidoras das duas verdades são intelectualmente postuladas como verdadeiramente estabelecidas e, portanto, determinadas como sendo objetos de conhecimento, jamais será capaz de abandonar a mente dualista. Pois, quando essa pessoa determina que “as duas verdades são inseparáveis”, com essa crença profundamente arraigada, ela também não abandona a ideia de que o convencional existe como mera ilusão. Sendo assim, mesmo quando estabelece a natureza não dual da realidade, ela abriga pensamentos associados ao dualismo.
Ao determinar que “convencionalmente, as coisas são semelhantes a ilusões”, elas são descritas como “ilusórias” porque as elaborações conceituais, ou seja, as imputações de existência última feitas pelos seguidores dos Śrāvaka e Yogācāra foram reprimidas. No entanto, o Mādhyamika não diz “semelhantes a ilusões” por conta de as coisas serem vazias de substâncias causalmente eficazes no nível convencional. Aqui, mesmo no momento de fazer essa determinação, tendo apreendido as características definidoras do que é substancialmente estabelecido no nível convencional como sendo real, afirma-se então que “estas não são de fato estabelecidas como entidades reais”.
Neste caso, portanto, a mente não abandonou esses dois modos de ser, [ou seja, o último e o convencional][14]. Sendo assim, segue-se que, quando a aparência — ou seja, o sujeito (chos can)[15] — é postulado como uma instância definida (mtshan gzhi)[16], enquanto ocorrer que nossa mente remova os predicados (chos) desse sujeito ou as elaborações conceituais relativas a essa instância definida, e assim considerar a aparência como meramente ilusória, a mente que se apega e acredita nas características definidoras da aparência não cessou. Tal pessoa não é considerada alguém com a visão de grande equalidade.
Nesse sentido, a determinação dos objetos de conhecimento pela fixação da mente na subdivisão[17] das duas verdades foi declarada um remédio para pessoas que se apegam excessivamente a entidades reais. No entanto, a essência dos fenômenos não possui características definidoras dualísticas. De fato, aquele em quem a crença em características definidoras cessou está livre desse apego e, portanto, não mais anseia ou deseja nada que apareça. Nesse caso, o termo "visão de grande equalidade" é empregado.
Uma pergunta adicional: "A mera aparência não é a realidade convencional?" [Resposta:]
Isso é o que foi apontado acima em relação a qualquer pessoa que acredite que a aparência seja convencional e acredite, no fundo[18], que a liberdade de elaborações conceituais a respeito disso é o absoluto. Ainda assim, para uma mente que não acredita na realidade das duas verdades, perguntar se elas são uma ou duas é como perguntar se o filho de uma mulher estéril é azul ou branco, como citado nas escrituras[19].
Uma pergunta adicional: "O que, então, a sua tradição estabelece?" Nós apenas repudiamos suas visões metafísicas inferiores, sem estabelecer qualquer ponto superior nosso. No uso costumeiro, isso é chamado de "visão da grande equalidade", embora não haja qualquer crença em qualquer visão metafísica.
| Traduzido por David Higgins, 2023. Traduzido do Tibetano para o Português utilizando a versão de David Higgins como base por Sergio de Senna Correa.
Bibliografia
Edições Tibetanas
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Rong zom chos kyi bzang po. "Sbrul nag po’i stong thun" In Rong zom bka’ ’bum: A Collection of Writings by the Rnying-ma-pa Master Rong zom Chos kyi bzang po. Thimpu: Kunsang Topgay, 1976, 445–452.4
Fontes Secundárias
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Higgins, David, and Martina Draszczyk. 2019. Buddha Nature Reconsidered: The Eighth Karma pa's Middle Path. 2 vols. Vol. 1, Introduction and Analysis. Vol. 2, An Anthology of His Writings: Critical Texts and Annotated Translations. Wiener Studien zur Tibetologie und Buddhismuskunde 95.1–95.2. Vienna: Arbeitskreis für Tibetische und Buddhistische Studien Universität Wien.
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Köppl, Heidi. 2008. Establishing Appearances as Divine: Rongzom Chözang on Reasoning, Madhyamaka, and Purity. Ithaca: Snow Lion.
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van der Kuijp, Leonard. 1983. Contributions to the Development of Tibetan Buddhist Epistemology – from the Eleventh to the Thirteenth Century. Alt-Neu-Indische Studien 26. Wiesbaden: Franz Steiner Verlag.
Mikogami, Esho. 1979. "Some Remarks on the Concept of arthakriyā." Journal of Indian Philosophy 7, 79–94.
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Negi, J.S. 1993‒2005. Tibetan-Sanskrit Dictionary. 16 vols. Sarnath: Dictionary Unit, Central Institute of Higher Tibetan Studies.
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Sur, Dominic. 2017. Rongzompa’s Entering the Way of the Great Vehicle: Dzogchen as the Culmination of the Mahāyāna. Boulder, CO.: Shambhala Publications.
Tillemans, Tom. 1984. "On a Recent Work on Tibetan Buddhist Epistemology." In: Asiatische Studien/ Études Asiatiques XXXVIII, 1, Revue de la Société Suisse-Asie, Berne: P. Lang, 59-66.
Versão: 1.0-20251009
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Esta curta parábola, estilizada como um resumo (stong thun), é bem conhecida nos círculos Nyingma e Kagyü por sua lúcida exposição das duas verdades, conforme compreendidas a partir de vários pontos de vista filosóficos budistas que, tomados em sequência ascendente, culminam na mais alta doutrina tântrica da inseparabilidade das duas verdades. Minha compreensão deste texto deve muito à visão geral e à análise filosófica de Mikyö Dorje em sua obra-prima final, Sku gsum ngo sprod rnam bshad. Para uma tradução e edição crítica da seção relevante, veja Higgins e Drazczyk 2019, vol. 2, 255-67 e 268-76; para uma análise filosófica contemporânea dos discursos de Mikyö Dorje e Rongzom sobre a metáfora da serpente negra no contexto da doutrina da inseparabilidade das duas verdades, veja ibid., vol. 1, 257-76. Conheci a parábola da serpente negra de Rongzom em 1986, quando estudei a versão resumida apresentada no terceiro capítulo de "Theg chen tshul 'jug", de Rongzom, com o Prof. Herbert Guenther em um curso de pós-graduação em Leituras Tibetanas. Nesse ínterim, beneficiei-me da tradução e discussão desta sinopse na tradução de Dominic Sur de "Theg chen tshul 'jug" (Sur, 2017) e das análises do "Sbrul nag po'i stong thun" em Koppl, 2008 e 2010, e Almogi, 2009. ↩
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Tib. mtshan nyid : Sânscrito . lakṣaṇa ↩
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Tib. sgro skur med. Literalmente, “não há imputação (sgro ' dogs) ou depreciação (skur 'debs)”, o que, neste contexto, significa que a evidência ingênua do que é diretamente percebido por todos (exceto bodhisattvas e buddhas de décimo nível) é indiscutivelmente atestada por todos e, portanto, não é motivo de disputa, seja a favor ou contra. ↩
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Literalmente, “porque lhe faltam os elementos principais como base”. Os quatro elementos principais (mahābhūta) são terra, água, vento e fogo. ↩
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Tib. bya ba byed pa’i nus pa: sânsc. arthakriyā. Os Budistas Sarvāstivādins (“aqueles que proclamam que tudo existe”) eram realistas metafísicos na medida em que acreditavam que todos os objetos, propriedades e relações que o mundo contém existem independentemente de como e se os percebemos, experimentamos ou pensamos sobre eles. Subjacente a essa visão está a suposição de que entidades objetivas têm certos poderes causais, ou seja, têm a capacidade de causar efeitos (eficácia causal) ou desempenhar funções (arthakriyā) que servem a propósitos específicos, como no exemplo clássico de um jarro ser capaz (e, portanto, servir ao propósito específico) de conter água. Contra os realistas, os Budistas idealistas argumentavam que mesmo fenômenos não físicos podem produzir efeitos, como no exemplo de um sonho erótico. Sobre os diferentes significados de arthakriyā e algumas de suas implicações filosóficas, veja Mikogami 1979. ↩
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Tib. rdzas su yod pa : Sânscrito . Dravyasat ↩
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O único modo de existência em que eles não acreditam é 4) a existência nominal (btags su yod pa: sânsc. prajñāptisat) das realidades últimas e convencionais. ↩
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Tib. kun nas nyon mongs pa’i chos: sânscrito: saṃkleśadharma. Seguindo as explicações de Schmithausen sobre este termo, eu o traduzo como “fatores poluentes”. Este termo é frequentemente empregado juntamente com seu antônimo vyavadāna [dharma] (“[fatores] purificadores”). Veja Schmithausen 2014, 135, 145. Esses dois termos são considerados correlatos de saṃsāra e nirvana, respectivamente; tomados em conjunto, refletem a antiga preocupação cultural pan-indiana com a pureza e a impureza, no que se refere especificamente às ideias soteriológicas de obscurecimento e purificação. Embora o alcance semântico de saṃkleśa se sobreponha ao de kleśa, o primeiro (como Anne MacDonald me apontou) é, na verdade, mais amplo, abrangendo todos os aspectos da existência "samsárica" (ver, por exemplo, Schmithausen 2014, 135, n. 552). “Por exemplo, a compaixão (karunā) tem um sentido positivo e não é um kleśa (todos os kleśas são negativos), mas é um saṃkleśa porque envolve apego.” (MacDonald, correspondência por e-mail, 2020). Nesse sentido, o prefixo saṃ- parece significar a natureza global e penetrante desses fatores contaminadores da existência. Vale a pena notar que a metáfora central transmitida por saṃkleśa (impureza, poluição) é o significado primário de kleśa em si, como refletido no indiano médio kileśa e no páli kilesa, que ambos significam "sujar, manchar, profanar". A conotação de “aflição” (popular em traduções modernas da família de termos nyon mongs tibetanos) é um significado secundário que deriva de uma compreensão clássica mais geral (não Budista) baseada na raiz verbal kliś- (afligir, atormentar, causar dor), veja Schmithausen 1987 vol. 2, 246-7, n. 21. Finalmente, pode-se notar que tanto o significado primário quanto o derivado de kleśa (ou seja, profanação e aflição) foram explorados por intérpretes Budistas indianos quando definem este termo, e ambos os sentidos são vagamente refletidos nos elementos do composto tibetano nyon mongs (perturbação/obscurecimento). ↩
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Os três veículos tântricos inferiores são conhecidos como "tantras externos do ascetismo" (phyi thub pa rgyud). Estes são superados pelos três veículos tântricos superiores, conhecidos como "tantras internos dos meios hábeis" (nang thabs kyi rgyud), que compreendem Mahāyoga, Anuyoga e Atiyoga (rdzogs chen). ↩
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Tib. dpa' bo: Sânscrito (mvy) vīra, śūra. Este termo possui uma ampla gama de significados, mas refere-se amplamente a figuras humanas ou divinas associadas a poder, coragem e virilidade. Muitas vezes, como no presente contexto, refere-se a divindades masculinas iradas que aparecem com suas consortes (vidyā) na comitiva da maṇḍala tântrica e servem para proteger o adepto tântrico de vários obstáculos e influências prejudiciais. ↩
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Tib. brtul zhugs : sânscrito. (Negi) vrata ↩
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Tib. bden pa gnyis su lta ba’i ’dzin pa ↩
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Tib. log pa. Eu leio isso aqui como um verbo intransitivo (tha mi dad pa). As três concepções, que progressivamente engendram o realismo metafísico, são: 1) a visão de entidades reais, 2) a crença em suas características (ou propriedades) e 3) habituação (ou apego) às aparências. ↩
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Tib. tshul gnyis. Também é possível que este termo se refira aos dois "sistemas", a saber, Śrāvaka e Yogācāra, mencionados acima, mas o contexto sugere que Rongzom se refere aqui, mais uma vez, à suposta dicotomia entre as duas verdades, que ele considera uma armadilha para as tradições budistas não tântricas em geral, incluindo Madhyamaka. ↩
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Tib. chos can: Sânscrito. dharmin, lit. “possuidor de propriedade”, ou seja, o sujeito da predicação, aquilo que é definido por qualidades particulares (chos: dharma). ↩
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Tib. mtshan gzhi. Para uma discussão útil da teoria da característica definidora (mtshan nyid), definiendum (mtshon bya) e exemplificação (instanciação, instância definida) (mtshan gzhi), ver van der Kuijp 1983, 65-68 e a revisão de Tillemans sobre isso (Tillemans 1984, 61). ↩
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Tib. rkya ba. Rkya é um termo tibetano antigo (às vezes skya [ba] na grafia posterior) que se refere a "uma unidade de terra" demarcada para fins tributários durante o Período Imperial. Nos registros de terras imperiais, rkya é frequentemente conjugado com zhing (campo, terra) para formar o composto rkya zhing (lote de terra). Rongzom aqui usa o termo metaforicamente para significar a divisão ou compartimentação das duas verdades. Usei o termo "subdivisão" para captar esse sentido. Para uma investigação histórica esclarecedora deste termo, veja Iwao 2009. ↩
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Tib. zhe la ↩
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Esta é uma tradução provisória da frase que aparece de modo independente gzhag par lung bstan pa yin te. ↩